21/4/2017
– Hercília M. Andrade
Passos
lentos, cabeça baixa, semblante triste, bem devagar, senta num banco da praça.
Olha à volta, como quem procura alguém e, com um tímido sorriso no canto dos
lábios, mergulha em suas lembranças.
Alheio
a tudo, muita conversa, pessoas que passam, o gargalhar das crianças, nada
importa agora. Aos poucos, aqueles olhos tristes e sem o brilho da juventude
tão distante, pára em um ponto qualquer, na linha do horizonte. Não observa as
horas que passam, nem os dias ou os anos... sem esperança, projetos, sonhos,
aguarda não sabe o quê... quando... não importa, tudo está bom, ou não.
É
assim, todos os dias, olha à volta, deitado naquela cama macia de um quarto
simples, silencioso, sem ter com quem conversar. Na cabeceira, um criado mudo
com um copo com água e algumas bolachas amolecidas fora do pote. Mas ainda
consegue pensar, lembrar ou criar situações que gostaria de vivenciar, afinal,
isso não cansa. Os dias são longos e as noites...ah... essas são piores, o sono
é picado. Por que não amanhece logo?!
Tudo
passa... aquela vivacidade de menino espevitado, correndo pelo pasto, subindo
em alguma árvore em busca de fruto, banhando-se no córrego em dias quentes de
verão. Os namoricos, beijos roubados, desabrochar para o amor, descobertas tão
gostosas de quem deixa a inocente infância para trás e mergulha de cabeça em
novas experiências, com muitas exigências impostas pela vida. Tudo rápido
demais. Trabalho, família, contas... Mal se deu conta e já perdeu a conta de
quanto perdeu: os filhos cresceram, os cabelos embranqueceram... Mas ganhou
também... Lembranças, ninguém vê. Só vê quem tem para lembrar.
Pela
janela aberta sente o calor do sol, o cheiro das flores no jardim, ouve a algazarra
dos pássaros lá fora, a conversa dos vizinhos. Como é bom viver!
Ansioso
espera alguém se lembrar de ir visitar, para contar alguma novidade. Tem
necessidade de saber o que está acontecendo fora do seu pequeno quarto.
Conversar é bom, rir de alguma piada dita tantas vezes, como se fosse a
primeira. Não importa, é bom.
As
horas passam e não vem ninguém.
Então
é hora de sair daquela pasmeira, descer pela ladeira, andar pela rua a passos
largos, cumprimentando a todos que encontrar, conhecidos ou não, atravessar a
avenida, entrar nas lojas, comprar alguma fruta, parar numa banca de jornal
para ler as manchetes, oferecer bala para a criança que passa fazendo birra
porque está cansada. Andar novamente, livre, desimpedido, atravessar a esquina
e fazer o trajeto inverso, voltando para casa, desejoso por um copo com água
fresca.
O
corpo dói, muda de posição na cama, estende o braço e, com dificuldade, pega o
copo e toma um gole daquela água que não está tão fresca. Esqueceram de trocar.
Tem
vontade de sair daquela cama com os lençóis amarrotados, o travesseiro
amassado, cobertor bem usado, mas o corpo não ajuda, as pernas trêmulas e
fracas, não são as mesmas de anos atrás. Num esforço descomunal, bem devagar
consegue levantar para, enfim, sentar e descansar numa cadeira de madeira, num
canto do quarto e ali passar um tempo, esperando até renovar as forças e,
arrastando os pés pesados, pelo piso desbotado, com muito cuidado, amparando-se
numa bengala, caminha para a sala indo direto para o sofá, esquecendo-se da
janela onde sempre dá uma espiadela, para ver se surgiu algo novo lá em baixo,
no quintal, lugar em que gostava de plantar. Fica ali largado e olhando para o
lado depara com a empoeirada estante, onde estão depositados tantos livros
importantes que antes folheava com tanto prazer. Dá vontade de pegar algum para
ler, mas desanima só de pensar que precisa se esforçar para levantar.
Sente
o cheiro de café, é hora do lanche da tarde.
Saboreia
o café quente servido numa caneca de louça com um pedaço de pão com manteiga,
bem lentamente porque já não tem dentes para ajudar a mastigar. A televisão está
ligada num programa qualquer. Que dia é hoje? Não importa. Já está na hora de
se arrumar para ir à igreja. Levanta rapidamente, vai ao quarto e abre o
guarda-roupa para pegar seu melhor terno que combina com a linda gravata que
ganhou do filho mais novo. Veste-se, pega sua bíblia e sai porta afora, não
quer chegar atrasado. Chega ao salão de culto, a organista dedilha uma música
solene, enquanto caminha vai cumprimentando discretamente alguns irmãos. Senta-se
ao lado dos coristas e com o coração cheio de júbilo presta seu culto de
adoração ao Criador. Ao final, o coral se levanta e entoa o último hino da
noite, regido por ele, com todo vigor. Ainda não tinha terminado quando é
despertado do seu devaneio pela mesma voz de sempre, seu filho, fiel cuidador:
“_ Vem tomar um banho que sua janta já está pronta.” Amparado por um par de braços fracos, caminham
lentamente para o banheiro.
Ainda
resta um fio de esperança. O que seria do homem sem sua lembrança?
Desilusão.
(inspirado em
meu amado irmão Enéas)